sábado, 29 de maio de 2010

"Há lampejos de que a Igreja se aburguesou, e muito"

Mais uma entrevista de peso e que explica com detalhes uma trajetória muito comum a todos os ex-seminaristas.

Ele é um dos mais assíduos frequentadores e incentivadores da "Pizza do Paierão"(*)

O personagem tão detalhista e provocante?

Antonio Orzari

Preliminarmente agradeço a lembrança de me consultarem a respeito de minha vida no tempo do Seminário da Imaculada Conceição, em Campinas, onde estudamos.
  •   De que cidade/paróquia? Quando entrou para o seminário?
       Nasci em 1943, em Araras, com uma paróquia, Nossa Senhora do Patrocínio, dirigida desde a década de vinte por Orestes Paschoal Quércia (sim, tio do político). Em fins de 1960, criou-se a do Bom Jesus numa capela grande - cujo pároco foi Ângelo Pedro Longhi (ordenado em 1959), professor no seminário -, à qual passei a pertencer. Fui para o “Paierão” em 1956, frequentando antes, por dois anos, o seminário da Congregação do Verbo Divino, em Araraquara, cujos estudos prosseguiriam em Ponta Grossa, PR. Imagino que meus pais e meus padrinhos, os pais do AA(**), tenham levado em conta a distância de Ponta Grossa. O SIC foi a solução. 
  • Por que entrou para o seminário?
Nossos avós tinham uma propriedade rural no município de Araras, próxima à Fazenda São Jerônimo, pertencente a Limeira. A paróquia que cuidava da capela da fazenda era a de São Sebastião, então aos cuidados do padre Euclides Senna, que, na São Jerônimo, celebrava uma vez por mês. Dia de missa era uma festa (sorvetes, guloseimas para a criançada e, para os adultos, jogo de malha e bocha). Creio que lá nasceram minhas curiosidades de como me tornar padre. A partir daí, perguntado, respondia: vou ser padre. Os verbitas(***) percorriam o estado em busca de vocações e me descobriram, já morador em Araras.
  • Quando saiu do ex-SIC? Quantos anos tinha?
Completei o ex-SIC em 1961 e cursei o seminário de Aparecida, iniciando a Filosofia em 1962 indo até 1964. Apenas como lembrança: o curso do seminário menor era de seis anos, ampliado para sete logo após minha saída de Campinas. Imagino que a ampliação objetivou compatibilizar o curso com os laicos. Portanto, ao sair de Campinas, tinha 18 anos, de Aparecida, 21.
  • O que aprendeu e o que faltou aprender no ex-SIC?
Aprendi tudo, do pouco que sei. Mas, o que me calou profundamente foi a ânsia de saber e de aprender. E saber sempre mais... Graças ao internato do seminário. Isto foi ensinado pelos professores e superiores. Há que se salientar que grandes mestres nos orientaram, sobretudo no enfoque de aulas, ou seja, de aprendizado de ciências, línguas e de disciplina. Os muitos colegas vencedores, espalhados por este mundão, são a prova cabal da excelente formação acadêmica. Contudo, já que sua pergunta induz, creio ter faltado aprender e apreender a solidariedade, a compreensão, a cortesia e, sobretudo, a humildade, implícita para exercer de modo condigno o ministério. E até para se tornar cidadãos conscientes. Nunca fui humilde, mas metido, nariz arrebitado... No geral, as manifestações de humildade, na época, parecem-me, ao tempo decorrido, que eram, sobremaneira, hipócritas, pois a delação corria solta pelos corredores e quartos dos superiores. Subliminarmente, a máxima talvez fosse: confere causam aliquem (imputar a culpa a alguém). Desculpe a frieza.
  • Por que saiu do seminário?
1)   Do ex-SIC para iniciar o curso de filosofia em Aparecida em 1962. 2) Da filosofia, em fins de 1964, pois o período fora bastante conturbado. Saliento três motivos, sendo o terceiro conseqüência: a) a revolução causada na Igreja pelo Vaticano 2º - a mente dos alunos girava a 360º a cada dia; b) o 31 de março de 1964 nos desnorteou, deixando-nos órfãos, sobretudo porque uns professores se bandearam para a redentora, fazendo de suas aulas um púlpito dos intentos militares (do seminário víamos equipamentos passando pela Dutra a caminho do Rio de Janeiro em 31/03/64); você já parou para pensar o quanto esta dicotomia dos mestres nos prejudicou?; e c) a confusão mental gerada por a) e b). No calor das discussões intermináveis surgiram alguns ressentimentos, logo vencidos. Era difícil conciliar posições. Creio que o êxodo de seminaristas dos anos subseqüentes tenha origem nisso tudo. Todavia, há de se lembrar que muitos são os chamados e poucos os escolhidos. Nada acontece por acaso. Os três anos de Aparecida foram-me muito ricos. Aprendi, estudei, discuti muito e, sobretudo, abri-me para, e descobri, o mundo. Tivemos em 1962 o insubstituível reitor padre Miele (depois bispo auxiliar em Campinas), de visão de longo alcance e de diálogo permanente. O que haveria de melhor?
  • Estudou depois que saiu do seminário?
Sim. Todavia, lembro que foi celebrado um convênio com os salesianos, tornando-se o seminário de Aparecida uma extensão legal do curso de filosofia de Lorena a partir de l963. Quem se interessou prestou vestibular. Lorena forneceu alguns professores (Riolando Azzi, por exemplo) e tínhamos compromissos burocráticos a cumprir. Cursei dois anos na USP e fiz complementação pedagógica na UMC, onde fui professor posteriormente.  
  • Qual a trajetória profissional? Casamento e filhos?
Na extinta revista “Visão” iniciei em 02/01/1965. Trabalhei na “Folha de S. Paulo”. Fui para o meio editorial, tendo trabalhado em diversas editoras. Assumi em 1967 o Banco do Brasil após concurso em fins de 1965. Nunca tive vocação para bancário e saí após sete anos (pela saída do BB, a mãe quase deu à luz a mais um filho). Trabalhei na gerência de vendas na IMESP(****), cujo boss era o competente Arnosti. Havia prestado concurso para o TRT, onde me aposentei após dez anos. Não trabalho mais, leio muito, escrevo bobagens e estou preparando um dicionário latino de expressões jurídicas. E, é lógico, aqui em casa, já que... (quem não se aposentou vai descobrir o que é o já que). Casei-me em 1970 (continuo com a mesma digníssima). Filho único, 28 anos, solteiro, exercendo em Brasília a função de advogado do Senado.
  • Quais as recordações marcantes do ex-SIC?
Reporto-me às magníficas pessoas: a fleugma do monsenhor Bruno Nardini; a simplicidade do padre Lauro Sigrist; a humildade do padre José Gaspar; a santa inflamação política do monsenhor Luís Fernandes de Abreu; a bondade do padre Ângelo Pedro Longhi; a arguta inteligência do padre Euclides Senna; a sabedoria e modéstia do internacional belga padre José Comblin (o M. Alors: quando chegou ao Brasil nos dava aula de francês, em francês, não sabia português, e não entendíamos nada, conversávamos e ele, pacientemente, dizia para a classe: alors... alors...)
  • Qual personagem o impressionou positivamente?
O senhor José, secretário e porteiro do seminário. Organizado, atencioso e educado. Pudera, fora jogador da Lusa na década de 1930 e torcia por ela. Imagine por qual time eu torço...  Méritos ao monsenhor Bruno Nardini que o tirou da sarjeta.
  • Alguma mágoa?
Acho que todas estão expressas acima ou a seguir.
  • Voltaria para o ex-SIC?
Sim. Desde que nos parâmetros da época quanto a estudos; pois, parece-me, pelo que se vê, que os padres ordenados mais recentemente deixam a desejar intelectualmente. Além de imitarem a gestuália pentecostal, o que, smj, empobrece a Igreja.  
  • Quais as principais mudanças com a entrada e saída do seminário?
Creio que a entrada no seminário tenha me propiciado a possibilidade de estudos, pois lá no meio do mato onde nasci, ou mesmo na provinciana Araras, não teria quaisquer avanços intelectuais. Imagino que tal situação tenha sido recorrente a muitos co-seminaristas. A saída do seminário me propiciou a descoberta do mundo como um todo. Isto me foi benéfico. Lembro que antes de seguir, como os professores desejavam, para o curso de teologia pretendia ficar um ano fora (o tal do aggiornamento do Mundo Melhor). Fui aconselhado a ir conversar com o arcebispo de Campinas, Paulo de Tarso Campos, sempre visto como rígido e imponente. Recebeu-me muito bem em palácio, elogiando minha decisão. Nenhum dos dois cumpriu o acordo verbal. O combinado? Deixa pra lá...
  • Dedica-se à Igreja atualmente?
Não.
  • Qual sua relação com a religião atualmente?
Mínima ou quase inexistente; acredito em Deus, mas a ritualística atual me deixa perplexo, para dizer o mínimo. Quando dá na telha gosto de ir ao Mosteiro de São Bento, em São Paulo, participar da missa cantada em latim pelos frades. Entro em igrejas quando tenho vontade. Sou amigo de diversos padres e até de bispos - uma relação de amizade. 
  • Compare sua religiosidade da época com a de agora.
Uma pergunta: eu era religioso na época? Ou era medroso? Medo do pecado mortal, do venial, da transgressão, do regulamento, dos superiores, da nota baixa, da reprovação ao final do ano, de “segurar” a parede, de suspenderem a sobremesa ou de participar de jogos? Medo de tudo isso... Havia colegas que sofriam com tais angústias, principalmente no curso de filosofia. Sempre passei batido por tudo isso. Um dia, na catedral de Campinas, vi um padre atendendo confissão, próximo ao altar-mor. Isto há mais de quinze anos. Fui, ajoelhei-me e não sabia o que dizer. De repente o insight: padre, fiz de tudo na vida, menos roubar e matar. - Só isso, meu filho? Vá em paz e reze três... Então, desculpe-me, estou de mãos vazias nesta comparação.
  • Como você compara a Igreja da época com a atual?
Por desconhecimento da Igreja atual não tenho o que comparar. Há lampejos de que a Igreja se aburguesou, e muito.
  • O que você acha dos encontros dos ex-SIC? Alguma sugestão?
Magníficos e não podem ser interrompidos. Creio que neles se dá a comunhão, a comum união de ex-SIC. Portanto, já está sugerido.
  • Qual mensagem?
A todos: pax, lux et bene. E nunca se esqueçam de tomar mingau de aveia com purê de maça.


Aí está a trajetória do A. Orzari, aguardando seus comentários. E, caso comentem como anônimos, não se esqueçam de identificar-se.

J.Reinaldo Rocha(62-67)


(*) "Pizza do Paierão": Encontro dos ex-SICs da grande São Paulo que acontece, em média, a cada 40 dias.
(**) Os pais do AA a que ele se refere não são os fundadores dos Alcoólicos Anonimos, mas sim os pais do nosso colega Antonio Arnosti (NP)
(***) Verbitas- Missionários do Verbo Divino (Societas Verbi Divini, SVD): Congregação religiosa católica fundada em Steyl, às margens do rio Mosa nos Países Baixos, no dia 8 de setembro de 1875, pelo padre alemão Arnaldo Janssen (NP)
(****) IMESP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (NP)
NP: Nota do Publicador

8 comentários:

  1. Respostas bem definidas e esclarecedoras.
    Gostei das citações do Mons.Quércia e do Pe.Longhi,visto que,também nasci em Araras, e os conheci.

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  2. Caro Orzari,
    Parabéns pela franqueza e coragem!
    Abraços
    Fadel

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  3. Caríssimo, este comentario sobre os novos ordenados, concordo plenamente, o rumo que a ingreja católica está se dirigindo é uma forma muito arcaica, não há modernismo e sim mudanças que não esta levando a nada, porem estamos perdendo muito fiés pelas outras igreja, seus relatos sobre o seminários foram otimos, aplausos...

    José alexandre

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  4. Estimado Orzari, as entrevistas nos aproximam, elas nos remetem ao ontem de nossas vidas trazendo gratas recordações. Você, ararense foi a pessoa que me acolheu no seminário menor (Anjo). Tomo a liberdade na fraternidade de fazer uma correção em nome da verdade: O nome do monsenhor é Paschoal Francisco Quércia Sobrinho. Certa feita, perguntei-lhe sobre o parentesco com o então político Orestes Quércia, e respondeu-me que não havia nenhum parentesco. Aceite meu abraço fraterno, estimado amigo.

    Jamil Sawaya

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  5. Na medida em que se sucedem as entrevistas, revivemos situações e sensações extraordinárias.
    Ao Orzari, conceitualmente tão próximo, e tão assíduo às nossas noites de pizza, em que, eu diria, sorvemos a sabedoria de todos, meu abraço caríssimo...
    Cláudio Natalício

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  6. Achei magnífica a sua entrevista, pela firmeza, pela coerência, pela clareza, por tudo. Muito bom, principalmente pela reflexão que propicia. Vilson Coletti.

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  7. Esta entrevista com o Antonio Orzari me remete àquele tempo. fui seminarista no Seminário da Imaculada na mesma época que ele. Tínhamos um conhecimento aprofundado dos conteúdos e agradeço ter estudado lá pelos conhecimentos adquiridos. Padres professores notáveis. E como acréscimo aos conhecimentos tínhamos um futebol notável com excelentes jogadores entre os seminaristas. Tempos que não voltam mais e que não vemos mais.
    Avelino Leonardo da Silva

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  8. Pô, cara, tiene pasado, como diria um espanhol!Imagino vc de batina andando pelos corredores da Imesp, dando a bênção aos funcionários de inserção, assinaturas e publicidade. Kkk.
    Parabéns pela trajetória, pelo sucesso do filho são-paulino, pelo merecido descanso com a aposentadoria. "O trabalho dignifica e enobrece, mas também cansa" - Ruy Barbosa.
    Abraços do Zé Ricardo.

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