sábado, 9 de abril de 2011

“O casamento descobriu-me às claras as raízes do egoísmo que o sacerdócio se velava, álibi de amar a todos e amar a ninguém”


Está de volta a emoção! E em grande estilo!
Não é trivial termos um amigo do Bento XVI  e alguém indicado a ser nome de praça, com direito a busto e tudo, nos contando sua trajetória de vida, suas limitações e seus pensamentos.
Acho que a maioria já sabe de quem se trata. Para quem ainda não sabe, e mesmo para quem já sabe, sugiro que leia até o final da entrevista. Garanto que colherão algumas lições para a vida.
  • Entrei no seminário.
1948-1949. Seminário Menor Diocesano de Nossa Senhora Aparecida. (Av. Saudades, 705. Caixa Postal 369. Campinas. SP. Bonde Saudades) . De 1950-1953, ao anexo do Colégio Diocesano (Rua Padre Vieira. Bonde Bosque) . Vivemos à construção do SIC e ao sairmos para São Paulo, com o Mário Faria, Hermínio e eu, deram uma de Moisés, de longe vimos Terra Prometida, nela não entrando.
  • Minha paróquia.
Minha paróquia é como as outras. Todas se assemelham escreveu meu amigo Bernanos em primeira frase de seu Diário de um pároco de aldeia. Jaguariúna. Uma rua de cima, uma de baixo, no centro, a igreja. A de cima, rua de entrada da vila. A contrária mão, saísse da vila, ou da vida, ali o cemitério. Poucas distrações, além de fazer filhos. Em fins de semana, os filmes no Odeon. Poucos bares. Nem uma fabriquinha, de vassoura, de guaraná, de cabo de guarda-de-chuva, como a de pai de Ifanger, em Indaiatuba que tais progressos, nem zona tinha. Vocações de padre? Nada. Nem chuvinha por aí Deus regava, passava e caia em Amparo. Lá, até em pedra germinavam vocações, em analogias que dizia meu amigo Guimarães Rosa: pra uns, as vacas morrem, pra outros até boi pega a parir. Seminarista, um só antes de mim, três depois mirradinhos, não vingando. Em resumo, acabei sendo o primeiro padre e único. A câmara cuidou de projeto de rua para mim, uma praça, no centro, um busto – alguém em entusiasmos, por projeto de meu pai, presidente da câmara. O jurídico a que se obstou: não dá, contraria as clausulas pétreas da Constituição, homenagem inter vivos, não pode. Data venia ao reverendo, só post mortem. Esqueceu-se do projeto. O proponente faleceu, meu pai, quanto a mim por aí vivo passeando, de jeito nenhum ainda post mortem , em que pesam ameaços. De resto, nem mais razão persiste para rua, placa, muito menos para busto, a sol, a chuva e à pontaria dos pombos, uma vez o referido reverendo ter dado baixa de praça e pronto ao que tenho dito! de homenagens póstumas, cumprindo-se a profecia do padre Gomes dizendo-me seminarista em férias: padre aqui não vinga. Sei lá se ocê vai dar certo, sei lá ... Dizem que Pe. Gomes era santo, será que pegou a praga?
  • Por que entrou para o seminário?
Sempre quis. De jeito algum de influência de minha mãe, em que pesam seus sacerdotais sonhos. Em vocações ajudava em dinheiro pequeno e em orações, um monte. Um dia, levou à igreja uma quantia mais significativa. Padre Milton Santana deu-lhe um santinho: A boa Irma, pudesse ver um filho nas honras do sacerdócio. Como padre fui-lhe a maior alegria e depois o deixando, a maior tristeza de sua vida. Em uma e outra situação esteve comigo, firme.
  • Quantos anos tinha ao entrar.
Aos 12 anos. Tarde de 21 de fevereiro de 1948. Levaram meu pai e amigo João das Laranjas, com seu carro. Sempre se orgulhou ter levado um padre ao seminário, contando a todo mundo. Não chegou a saber que deixei o ministério. Morreu antes. Em seu pequeno currículo em matéria de religião, mostrou-o olhos brilhantes a São Pedro. O velho balançou: falo com o chefe, sempre com sua mania de dar recompensa pra quem dá um copo de água... vou ver. Acrescentou dando uma de difícil , acho que vou te quebrar o galho . São Pedro se virou, sem antes de ver João enfiar mão buscando a uma cervejinha, mais não sendo roupas, bolsos, dinheiros, nem nada.
  • Quando deixou do seminário.
Nunca saí dos seminários. Ordenei-me em 24 de setembro de 1960, em Roma. Por 15 anos, fui professor e prefeito de estudos em Seminário de Aparecida de Filosofia , (Rua Barão do Rio Branco, 412, Telefone 8) e no Seminário Central de Ipiranga, ( Av. Nazaré, 993. Caixa Postal 12.561. Tel. 63-1689). Em Campinas, Diretor da Tribuna Ilustrada, Diretor dos Cursilhos, assistente do Ovisa, assistente de Equipes Nossa Senhora, professor na FAI, professor na PUC SP, em outros menores cursos, conferências, congressos, especialmente em antropologia filosófica (humanismos) e ateísmo em filosofia e à literatura. Em 1975 solicitei dispensa do ministério.
  • Porque saiu?
Não tinha problema pessoal de vida, especialmente por mulher. Como sucedido em trabalhos como padre, por isso, não me foi fácil conseguir a dispensa, sem caso com mulher. Colegas aconselhavam: inventa. Não! Relatei que estava vivendo em duas vidas. Em Campinas, uma vida de trabalhos estritamente sacerdotais e a arquidiocese cada vez mais alargando funções e atribuições. Em São Paulo, o que me realizava mesmo era a vida de professor na universidade, embora não escondendo minha condição de padre, vivia em um meio estritamente leigo. Por outro lado, colegas largavam o ministério e se casavam, de Campinas, de São Paulo, de toda parte , aos milhares saiam. Estávamos em pleno efervescente clima do Vaticano II, em profundas transformações. Decidi, hora era do sacerdócio de casados, chegava inexoravelmente. Errei.
  • O que aprendeu nos seminários?
Tudo. De meus professores guardo esforço e generosidade em tempos mais pobres. Nunca lhes imputo de omissões, de resto, nem a mim. Fiz o que pude ao fundo de minha imaturidade. Que mais pudesse fazer? Coisa nenhuma, não se pode julgar a leveza da juventude a partir de adultos em experiência vivida. Em contrário, julgar é coisa de velho, não de maturidade, mas de apodrecimento. Aprendermos velhos a lição com os frutos, quando maduros, caem. Demos lugar a loucura dos bem-aventurados jovens, deles é a primavera do mundo.
  • O que faltou aprender?
Não sei, nem me interessa, nem me cuido deste tipo de inventário. Deram-me informações, talvez poucas, gestos e atitudes, muitas a me conduzirem a criar e inventar minha vida. Agradeço aos superiores e colegas, a propiciar-me ambiente de amizade e de responsabilidade. E por aí vou tocando a vida a meu jeito de ser feliz. Mas, é duro!
  • Trajetória profissional após a saída?
Continuei professor, na PUC e na Fai por 4 anos Antropologia Filosófica/Humanismos. A partir de 1977 fui convidado pelo Mário Faria como diretor do Inocoop Bandeirantes. Por 25 anos aí estive até seu fechamento em 2002.
  • Trabalha ainda?
Aposentado. Estudo e escrevo pra caramba, apesar de meu AVC. Estou refazendo os caminhos da alfabetização, em português e outras línguas, o que não me impede de dar aulas particulares de grego e alemão. A propósito, sobre AVC. Na vida tudo se aprende, na solidão. Virei-me mudo que falo, surdo que ouço, pouco compreendo o que as pessoas falam. Neste isolamento, acreditem, vale a pena descobrir rostos, paisagens do mundo escondidos à sombra da vida. Viver é uma revelação, enquanto se respira.
  • Família.
Casei-me em com Marilda, loira e olhos azuis, ao ser-me escolhida, inteligentíssima, apesar de loira. Dois filhos, Christiano e Adriano, gêmeos, publicitário e veterinário respectivamente e Beatriz, fisioterapeuta. Todos bem em suas profissões e casados, 3 netos, Christiano ainda sem filho.
  • Recordações mais marcantes do tempo do seminário.
Tantas. Saudades? Claro , risco de viver do passado. Mas vale, feliz o homem que constrói sua vida em bases de lembranças que iluminam.
  • Com quem conviveu na época que o impressionou positiva ou negativamente.
Negativamente, ninguém. Alguns professores eram fracos. Mania de bispos achar que padre entende de tudo, trigonometria, astronomia, grego e sei lá. Bispo diz ao padre: vai lá, meu filho e manda ver . Estica mão, oferece anel, nêgo beija e sai: tô frito!!!- tripas contorcendo, pernas apertando. Poucos assim encontrei. Marcaram-me côn. Aniger Melillo e padre Adriano Van Iersel. Ao ensinar, faziam-nos descobrir gostos e tendências. Por além de informações, dava-nos um método, de andar por suas pernas. Tudo se aprende quando se encontra o caminho.
No Central do Ipiranga, padre Waldemar Martins. Despertava-nos ao gosto da filosofia. Com ele aprendi a viver com meus alunos.
Em Roma, não cito dos professores da Gregoriana, hors concours. No Pio Brasileiro, padres, Oscar Müller, diretor espiritual e Luciano Mendes, junto a eles respirava-se a vida de Jesus.
  • Mágoa?
De jeito nenhum!
  • Voltaria no tempo novamente?
Não, tipo de questão inconsistente. Vivia em plenitude, naquela situação e naquele tempo. Fosse-me possível refazer os passos de minha vida, a todos refizesse, menos os que a saudade apagasse. Enquanto dure a vida, responderei à vocação de ser feliz, doando-me, carregando as eternizadas razões que por aí construí. De resto, nada me turbe!
  • Dedico-me à Igreja Católica atualmente?
Na linha da pergunta, não, atuando em liturgias, cursos, etc. Não me é fácil ser um ex-padre dentro da Igreja. Desde os doze anos, fui formado como padre. Quando deixei o sacerdócio, desmanchou-se uma inteira vida. Uma ruptura? Em princípio, tive receios. Aos poucos, fui descobrindo o sentido não de uma ruptura, mas de um acabamento. O casamento descobriu-me às claras as raízes do egoísmo que o sacerdócio se velava, álibi de amar a todos e amar a ninguém. Apanhei pra burro! Diante de mim, o amor exigente, não um ideal, mas uma pessoa. Caí-me em óbvios, amar é despojar de egoísmos.
Em síntese, nunca fui um leigo, engajado ou não. Colado a mim, o sacerdócio, primordialmente a vocação de ensinar e escrever. Inventei minha vida de padre. Em universidade, em longos tempos de Inocoop, fui fiel a minha vocação, como outrora os padres operários e hoje os contemplativos, junto aos homens com palavra que se dê ou por presença fecunda. Por três anos, Jesus nada escreveu, falou e entregou-se em silêncio, dando o tempo das sementes, de tantos e tantos que guardam e divulgam sua palavra e sua vida.
  • Minha relação com a religião hoje. A religiosidade do meu tempo e hoje. Igreja de ontem e hoje.
Respondo em conjunto. Em nenhum momento deixei de amar a Igreja. Hoje, mais plenamente. A impulso de minha fé, sou levado à universalidade de todos os homens que a amam Deus ou ao homem. Em Jesus, encontrei minha religião para além de templos de Jerusalém, de Samaria, de Roma. Jesus contrariou às expectativas do povo judeu, mesmo dos piedosos, ideais de liberdade, grandeza e poder, reino de Deus a ser instaurado pelo Messias. Primeiros cristãos, em catacumbas, esconderam o reino de Deus a preço de sangue, adormecida a tentação de resgatar templos dignos do Deus rei dos reis. Jesus sempre Jesus reprovara os apóstolos de tentações de grandezas, pelo contrário, enaltecendo o serviço e o último lugar. Começos do quarto século, Constantino livrou o cristianismo das perseguições, logo mais vira religião oficial do império romano. Cristãos saíram à luz, desmontaram templos pagãos e coliseus, carregando ouro e mármores a construir igrejas, onde aprisionar o senhor Deus de Jesus, banido dos corações dos homens. Volta-se ao templo de Jerusalém pelo próprio Jesus destruído com sua morte, reconstruído coração do homem, único do templo com Deus. Por sua vez, papas e bispos investiram-se de poder à altura de sua dignidade. Erigiram palácios para abrigar sua infecunda solidão e em especial, sua pobreza. Roupas em púrpura e em pêlos de arminho e ainda calçam sapatos Prada, dignos da profecia do meu amigo Isaias: belos os pés que anunciam a paz. Cajados de pastores transformam-se em báculos e cetros sob insígnias dos reis, apesar em humildades chamarem-se servos dos servos de Deus. Por tudo me entristeço, pelo que também me responsabilizo, não mais que espectador de lamentações, em vez de transformar o mundo de que sonho.
Por fim, a mensagem de Jesus supera para além de teologias, de dogmas, de verdades que se cristalizaram. Valeram e valem a iluminar a única lei e sentido de nossa vida: do amor. De resto, a definição de Deus em Jesus supera o ser, o ter, o que querer absolutos de Javé. Em Jesus, dá-se a fantástica revelação de que meu Deus é pobre, aniquila-se em poderes e grandezas, para emergir o amor que dá e se entrega. Em sínteses de minha vida, chego a definição de Deus em comunhão: ele é uma verdade que se encontra a mim quando, me dei, me entrego, amo. Quer dizer, reciprocidade em comunhão.
Não renego verdades do passado. Deixo-as em parênteses todas as que me separam aos irmãos cristãos e aos homens de coração reto. Amo-os também meus amigos ateus que em seus olhos bilha meu Deus a que eles negam. Vou construir em poucas tábuas a arca, a minha, navegando aos mares de Deus, ali num canto, Jesus, mesmo dormindo... Como comecei citando o Diário de Bernanos, encerro: tudo que errei, tudo que acertei, entrego-me em abandono nas mãos daquele que em tudo cai: que importa? Tudo é graça.
Augusto José Chiavegato

Aí está a história de uma pessoa que muito fez render os talentos recebidos. Mesmo tendo o AVC podado-lhe algumas capacidades físicas, não se entregou e se desdobrou para nos brindar com suas respostas. Muito obrigado Chiavegato.
Conclamo a todos que utilizem o espaço reservado aos comentários para transmitir suas impressões sobre a entrevista. Só não esqueçam de identificar-se, caso comentem como anônimos.
Como vocês leram, ainda estamos abertos a publicar as entrevistas recebidas. Portanto, ainda é tempo. Que os indecisos deem-nos o prazer de conhecer as suas respectivas histórias.
Até uma próxima intervençao.

J. Reinaldo Rocha(62-67)